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Capa Dossiê Geográfico da COVID 19 em JP.png

APRESENTAÇÃO

Esta reflexão surge inspirada pela publicação “Prioridade na vacinação negligencia a geografia da COVID-19 em São Paulo”, do LabCidade - Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). A reportagem divulgada em 26 de maio de 2021 traz mapas que comparam a concentração de hospitalizações por COVID-19 e Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAGs), a mortalidade por COVID-19, a imunização com duas doses, a imunização pelo critério etário (primeira dose), imunização pelo critério trabalho (exceto saúde), imunização por critério trabalho na área da saúde e a população negra na cidade de São Paulo.

No ímpeto de contribuir com esse debate, o coletivo que nesse momento compõe a diretoria da AGB João Pessoa se propôs a produzir também alguns mapas, assim como análises sobre esses dados, voltados para o município de João Pessoa. Para tal, seguimos quatro frentes de espacialização da pandemia na cidade, por bairro, no período de março de 2020 a maio de 2021: os casos confirmados, os óbitos, a taxa de letalidade e o avanço no processo de vacinação da população.

A partir disso e tomando por bases os dados disponíveis sobre a pandemia em João Pessoa, dentre as diferentes considerações possibilitadas, observa-se o descompasso entre os problemas identificados, no caso uma maior concentração de casos e mortes em bairros periféricos, enquanto paralelamente há a adoção de medidas que não possibilitam e ou priorizam conter a disseminação da doença nesses lugares, reforçando, sobretudo, o racismo estrutural e a maior vulnerabilidade da população pobre.

No momento em que realizamos esse trabalho, o país já ultrapassa a marca de meio milhão de brasileiros e brasileiras mortos em face da COVID-19, vítimas de uma política direta e indiretamente genocida capitaneada pelo próprio presidente da república. Nesse sentido, além de exigir a imediata saída e punição de Jair Bolsonaro e seus cúmplices, acreditamos que a produção desse tipo de análise a que pretendemos, também compõe formas de resistir a essa tragédia que, dentre muitas mazelas, é cotidianamente abastecida pelo negacionismo científico.

Nos cabe, assim, combater o negacionismo não somente na defesa das ciências biológicas e da saúde, que obviamente nesse momento tomam centralidade, mas também às ciências humanas e sociais - sem as quais não há saída para a pandemia e a retomada num direcionamento coletivo em prol do direito à vida com dignidade.

Dito isso, as reflexões subsequentes, assim como todo o material gráfico e cartográfico que apresentamos são produtos de um esforço coletivo possível de se realizar num espaço tal qual a AGB. Tal trabalho, recorda o papel do geógrafo e da geógrafa em refletir e produzir conhecimento para além das pesquisas individuais, numa perspectiva coletiva de pensar e produzir acerca das questões latentes.

VACINAÇÃO E DESIGUALDADES SOCIOESPACIAIS

No dia 29 de maio de 2021 a Prefeitura Municipal de João Pessoa (PMJP) anunciou a ampliação do público apto a se imunizar contra a COVID-19, incorporando os trabalhadores e trabalhadoras do ensino superior acima de 40 anos. Se por um lado o avanço da vacinação há de ser comemorado, é preciso, por outro, compreender esse processo para além dos números gerais da vacinação, entender suas nuances e análises possíveis de serem apontadas nesse momento.

Para tal, por lidarmos com algo que ainda se encontra em andamento desde janeiro de 2021, circunscrevemos os dados para esse estudo até o fim do mês de maio. Em termos gerais, o departamento de informática do Sistema Único de Saúde do Brasil (DataSUS), registrava nesse momento que 237.680 (duzentos e trinta e sete mil, seiscentos e oitenta) doses de imunizantes contra a COVID-19 haviam sido aplicadas na população pessoense. O primeiro dado que chama atenção é a distância nos valores da primeira e segunda dose, cinco meses após o início do processo de imunização, como demonstra o Gráfico 01:

Gráfico 01 - Vacinação por doses aplicadas

Vacina por doses.PNG

Fonte: DATASUS (2021)

Praticamente dois terços das vacinas contra a COVID-19 aplicadas no município se reduziam à primeira dose, sendo assim, estando ainda incompleto o ciclo de imunização (ocorrido cerca de quinze dias após a aplicação da segunda dose). No dia 6 de junho de 2021, o Diário do Nordeste publicava que a população pessoense de fato imunizada representava apenas 12,47% (em relação à população geral). Assim se encontra espacializado o processo de vacinação em João Pessoa:

Mapa 01 - Vacinação contra a COVID-19 em João Pessoa

AGB - Vacinação contra COVID-19 copy.png

O mapa acima trata da vacinação em números absolutos, por consequência, os bairros mais populosos da cidade concentram o maior número de vacinados até então. Se sobressaindo o bairro Mangabeira que apresenta população superior a 75 mil habitantes, Cristo Redentor, Manaíra e Valentina. No entanto, como dito acima, não se pode abalizar esses dados somente de forma geral, é preciso pensar em outras nuances, como faremos adiante.

Essas vacinas até agora aplicadas refletem o cenário de lentidão no processo de imunização da população em João Pessoa que não se faz uma exceção ao ocorrido nacionalmente, face ao fato da excessiva demora na chegada das vacinas ao Brasil. Apesar de transcender o objetivo deste texto aprofundar nessa questão amplamente noticiada, cabe tratar de dois casos. O fato mais representativo se deu quanto ao imunizante Pfizer, produzido pelo laboratório BioNTech, que teve ignoradas 101 tentativas de contato, desde agosto de 2020, com o Governo Federal para comercialização da vacina.

 

Ao mesmo tempo, também contribuiu para esse cenário a forma sistemática que o Governo Federal e os cúmplices de Jair Bolsonaro tentaram desacreditar o imunizante que vinha sendo desenvolvido pelo Instituto Butantan - nesse caso eram dois os motivos que levaram o mandatário a se opor a CoronaVac: primeiro por uma disputa eleitoral antecipada com o governador paulista João Dória (PSDB), afirmando em 10 de novembro de 2020: “Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Doria queria obrigar a todos os paulistanos a tomá-la.” E segundo, numa faceta xenofóbica comum a ele, por se tratar de uma parceria do centenário e renomado instituto brasileiro com a farmacêutica chinesa Sinovac, sobre isso falou em 21 de outubro de 2020: “Não compraremos a vacina da China” quando desautorizou o então Ministro da Saúde Eduardo Pazuello a fechar um contrato com o Butantan para aquisição de 46 milhões doses da CoronaVac.

Caso os desejos do presidente tivessem se tornado realidade, ou seja, que a CoronaVac não fosse desenvolvida e de eficácia comprovada pela ANVISA e não estivesse disponível para a população brasileira, João Pessoa não contaria com 59% das vacinas aplicadas até maio, esse número chegaria a 63% se incluirmos a insistentemente ignorada Pfizer. É o que explicita o Gráfico 02:

Gráfico 02 - Vacinação por imunizante

Vacina por imunizante.PNG

Fonte: DATASUS (2021)

Como demonstrado no Gráfico 2, até maio de 2021 a imunização em João Pessoa dependia 96% de vacinas aqui produzidas, de forma que apesar de necessitar da importação de ingrediente farmacêutico ativo (IFA), o tratamento final se dava em solo nacional através do Instituto Butantan (CoronaVac) e da Fundação FioCruz (Astrazeneca).

Nesse sentido, quando olhamos esses dados se tornam materialmente explícitos os prejuízos para com a vida da população, diante da insistente pauta genocida adotada pelo Governo Federal ao sabotar também o processo de imunização. Bem como são nesses momentos quando podemos apontar a responsabilidade do presidente e seus cúmplices na tragédia que já ceifou a vida de mais de meio milhão de brasileiros e brasileiras - muito em função da demora na compra das vacinas.

 

Dito isso, analisamos também como se deu a distribuição por sexo e raça da população vacinada, entre janeiro e maio de 2021, nas seguintes categorias: Comorbidades; Forças Armadas (membros ativos); Forças de Segurança e Salvamento; Funcionário do Sistema de Privação de liberdade; Pessoas com deficiência; Pessoas com 60 anos ou mais institucionalizadas; Pessoas em situação de rua; Povos e Comunidades tradicionais; Povos indígenas; Trabalhadores da Educação; Trabalhadores da Saúde; Trabalhadores do Transporte; Trabalhadores Portuários; Pessoas de 80 anos ou mais; Pessoas de 75 a 79 anos; Pessoas de 70 a 74 anos; Pessoas de 65 a 69 anos; e Pessoas de 60 a 64 anos.

Se tratando da distribuição dessa população por sexo, nota-se uma predominância da vacinação de pessoas do sexo feminino (cerca de 62%), sobretudo quanto aos “Trabalhadores da Saúde”, “Trabalhadores da Educação”, assim como da população com “comorbidades”, e em todas as categorias por faixa etária acima dos 60 anos - porcentagem maior conforme o avanço da idade. É o que vislumbra-se no Gráfico 03:

Gráfico 03 - Vacinação por sexo

Vacinação por sexo.PNG

Fonte: DATASUS (2021)

Quanto a população do sexo masculino (cerca de 38% dos vacinados), os dados mais expressivos encontram-se nos “Funcionários do Sistema de Privação de Liberdade”, “Pessoas em situação de rua” e “Forças de Segurança e Salvamento”. Quanto às categorias de “Trabalhadores do Transporte” e “Forças Armadas”, onde a cifra atinge 100%, absolutamente são baixos o número de vacinados até aquele momento, sendo respectivamente 1 e 30 pessoas nessas categorias, conforme atestam os dados consultados.

Se por um lado nota-se a predominância da vacinação do sexo feminino conforme se avança a idade, chegando a atingir 69,3% na faixa etária de 80 anos ou mais, por outro lado, essa também é a população mais afetada por comorbidades, categoria na qual a vacinação feminina representa 58,5% do total e também das pessoas com mais de 60 anos institucionalizadas - 60,5%. 

Só observamos uma equidade nesses dados referentes à vacinação dos “povos indígenas”, e mais ou menos quanto às "pessoas com deficiência” (com pequena maioria masculina) e “povos e comunidades tradicionais” (com uma pequena maioria feminina).

É importante notar que mesmo a população feminina representando no geral o maior público vacinado até então, em algumas categorias essa porcentagem é bem inferior ao masculino, a exemplo, das “Forças de Segurança e Salvamento” representam somente 11,5%; “Funcionários do Sistema de Privação de Liberdade” a cifra não chega aos 14%. O inverso notamos quanto aos “Trabalhadores da Educação” cujos vacinados do sexo masculino somam apenas 26,5% e a menor porcentagem encontra-se nos “Trabalhadores Portuários”, os quais só atingem 21,5% dos vacinados.

São muitas as possibilidades que os dados apontam e as pesquisas futuras poderão também aprofundar essas e outras questões, nosso objetivo nesse momento está mais no campo de apontar algumas reflexões do que efetivamente aprofundá-las - entendendo as limitações dos dados e da dinâmica do processo de imunização ainda estar em curso.

Dito isso, o outro campo que buscamos trazer para essa discussão inicial está posto na distribuição das pessoas vacinadas (nas categorias supracitadas), tendo como parâmetro a questão racial. Esses dados estão ilustrados no Gráfico 04:

Gráfico 04 - Vacinação por raça

Vacinação por raça.PNG

Fonte: DATASUS (2021)

Os dados por raça estão classificados com base nas opções adotadas pelo IBGE (Amarela, Branca, Indígena, Parda e Preta) e são colhidos por autodeclaração, metodologia também utilizada pelo instituto. Nesse sentido, o primeiro dado a chamar atenção é a alta taxa de ausência de informação em todas as categorias, que pode se dar tanto pela pessoa não se autodeclarar nenhuma das opções apresentadas, e ainda por falhas na coleta desses dados (subnotificação). Para tal, outra pesquisa seria necessária para compreender esse fenômeno a fundo. 

De toda forma, com exceção das categorias “Povos e Comunidades Tradicionais” e “Povos Indígenas”, nas demais, a não identificação se mantém superior a casa dos 13%. A taxa mais elevada se encontra em “Trabalhadores portuários” - 24,7%, seguida por “Trabalhadores da Saúde” - 23,2%, “Funcionários do Sistema de Privação de Liberdade” - 22,7%”, “Forças de Salvamento e Segurança” - 20,5% e “Pessoas de 80 anos ou mais” onde atinge 20,2% dos dados.

Feito essa ressalva, a raça predominante nas categorias com maior quantitativo de pessoas vacinadas é a “parda” em detrimento de “indígena” e “preta”. Vejamos alguns casos discrepantes: quanto aos “Trabalhadores da saúde” vacinados 36,5% se declararam pardos, 2,3% pretos e somente 0,1% indígenas; dos “Trabalhadores da Educação” o quantitativo de pardos vai a 40%, enquanto pretos representam 2,7% e indígenas 0,2%.

Amarelos e brancos são predominantes (após os pardos) nas categorias “Forças armadas” onde representam, respectivamente, 26,6% e 23,3%. Há um equilíbrio na categoria “Pessoas com deficiência" na qual amarelos representam 19,2% e brancos 19,3%; concomitante, amarelos atinge 28,7% dos “Funcionários do Sistema de Privação de Liberdade” e brancos 20,3% de “Pessoas de 80 anos ou mais”.

São nas categorias de faixa etária, ou seja, a partir dos 60 anos, onde observa-se pouca presença preta e indígena declarados que já receberam pelo menos a primeira dose da vacina contra a COVID-19. Enquanto pretos não ultrapassam a casa dos 3% nessas faixas etárias, os indígenas não atingem sequer 1%. Inclusive, na categoria “Povos Indígenas”, onde pardos representam  71%, brancos 26%, pretos 21,9%  e amarelos 17,3%, os que se declararam indígenas somam apenas 8%.

Em geral, os dados refletem mazelas historicamente constituídas, sobretudo no acesso da população preta a determinadas profissões, como no setor da saúde, assim como da educação. Também revela, sobre essa mesma população, a baixa expectativa de vida, na população vacinada acima de 80 anos se declararam pretos apenas 2,9%. Já em relação à "População em situação de rua”, 8,6% se declararam pretos e 45,6% pardos, cifra que representa mais que o dobro dos brancos - 12,9%.

São inúmeras as possibilidades de análises sobre esses dados, apontamos alguns e acreditamos que esse trabalho cumpra o papel de suscitar outros conforme se dê o avanço da imunização da população de João Pessoa contra a COVID-19.

 A PANDEMIA DAS DESIGUALDADES SOCIOESPACIAIS

Para se apreender a espacialização dos casos e óbitos em decorrência da COVID-19 é necessário apontar algumas questões quanto à disseminação do vírus, face a impossibilidade da população realizar o isolamento social necessário - sobretudo a população pobre e/ou sem renda. É possível rastrear essa questão quando analisamos os dados sobre o Auxílio Emergencial e o Bolsa Família, benefícios sociais que atendem diretamente a população em vulnerabilidade social.

Os primeiros estudos apontam que o isolamento social para conter a disseminação do coronavírus é necessário até que o processo de imunização atinja pelo menos 75% da população, percentual apontado para o controle da pandemia, conforme demonstrado no estudo realizado pelo Instituto Butantan em Serrana-SP.

Assim, para se realizar o isolamento social é preciso que seja garantido à população condições socioeconômicas para tal. Isolamento social sem garantia mínima de renda, é condenar as pessoas à morte - seja pela fome, seja pelo vírus.

Em 2020, após uma série de resistências provindas do Planalto, foi aprovado no Congresso Nacional e sancionada a Lei nº 13.982, de 2 de abril regulamentando o chamado “Auxílio Emergencial”, que minimamente garantiria uma ajuda financeira inicialmente por parcelas com valores de R$ 600,00 e R$ 1.200 para famílias de baixa-renda e/ou desempregados. Nesse primeiro auxílio, depois estendido por mais quatro meses com parcelas de R$ 300,00, os beneficiários do programa Bolsa Família recebiam apenas o benefício de maior valor (ou seja, não podiam acumular).

Para o Auxílio Emergencial de 2021 o cronograma inicial previa quatro parcelas (entre abril e julho), que foram estendidas para agosto, setembro e outubro, totalizando sete parcelas. No entanto, diferentemente do auxílio anterior, nesse caso seria de uma cota de R$ 150,00 para famílias de uma só pessoa, R$ 250,00 para famílias de duas ou mais pessoas e R$ 375,00 para mães chefes de família monoparental.

Além da queda nos valores do benefício, houve um arrocho nos critérios de concessão o que levou a cortes gigantescos. No Gráfico 5 podemos observar a diferença entre os recursos aplicados para o Auxílio Emergencial e o Bolsa Família em 2020 e em 2021 para a população de João Pessoa. Vejamos:

Fonte: Portal da Transparência (2021)

Gráfico 05 - Auxílio Emergencial e Bolsa Família em João Pessoa (recurso destinado)

Auxilio e Bolsa Familia recurso.PNG

Fonte: Portal da Transparência (2021)

A queda no montante do Auxílio Emergencial de 2020 para 2021 foi de 99,98%, enquanto a do Bolsa Família atingiu uma redução de 58%, somados os valores dos dois benefícios, deixará de circular em João Pessoa em 2021 R$ 1.225.965.807 (um bilhão, duzentos e vinte e cinco milhões, novecentos e sessenta e cinco mil, oitocentos e sete reais) em recursos federais destinados a benefícios sociais.

 

Em termos de beneficiários, essa redução está expressa no Gráfico 06:

Fonte: Portal da Transparência (2021)

Gráfico 06 - Auxílio Emergencial e Bolsa Família em João Pessoa (beneficiários)

Auxilio e Bolsa Familia beneficiários 2.PNG

Fonte: Portal da Transparência (2021)

Como dito, do Auxílio Emergencial de 2020 para o de 2021, o Governo Federal enrijeceu as regras para concessão do benefício, o que implicou num corte exponencial do número de pessoas atendidas. Esse corte representa uma cifra de 99,1% em comparação ao auxílio anterior, enquanto que no Bolsa Família, a contenção atingiu 2,6%. Em suma, o que se observa é que diante da maior crise sanitária, econômica e social do país, o mesmo Governo Federal que somente sob muita pressão instituiu um Auxílio Emergencial mínimo em 2020, cortou, além do valor, o número de beneficiários no ano de 2021 - ano no qual observamos um agravamento da crise com o processo de circulação de variantes mais contagiosas do vírus e da lentidão no processo de imunização.

É essa população que deixou de ser assistida pelo Estado, justamente a que obrigatoriamente se expõe mais ao vírus - diante da necessidade de buscar renda, sobretudo informalmente (em maio de 2021 o desemprego atingia 14,8 milhões de brasileiros). A nível de exemplo, nos dados de 2020 sobre o índice de adesão ao isolamento social em João Pessoa, esse percentual entre abril e julho ficou abaixo dos 70% recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), conforme o Gráfico 07:

Gráfico 07 -  Índice de Adesão ao Isolamento Social em João Pessoa

Isolamento social.PNG

Fonte: Portal G1, Prefeitura de João Pessoa, Jornal da Paraíba e Governo do MS¹

Esse índice supracitado foi amplamente divulgado entre os meses de abril e julho de 2020 por diversos meios jornalísticos, o qual se utilizava da plataforma Inloco para tal medição. O último dado encontrado após 24 de julho é de 29 de dezembro de 2020, o qual registrou um índice de 38,8% de adesão ao isolamento social na cidade, o que demonstrou pouca variação em relação aos meses anteriores. A AGB João Pessoa entrou em contato com a Gerência de Educação na Saúde, ligada à Secretaria de Saúde de João Pessoa, solicitando o acesso aos dados referentes ao índice de adesão ao isolamento social na cidade entre março de 2020 e maio de 2021, mas até o momento de publicação deste texto o órgão não nos deu retorno.

Dito isso, apesar de circunscrito aos primeiros meses da pandemia da COVID-19, os dados sintetizados no Gráfico 07 permitem alguns apontamentos. Longe dos 70% indicados pela OMS, o índice mais alto registrado no período foi em 21/04/2020 atingindo 58,2%, seguido em 25/05/2020 com 57,6%. Os índices mais baixos foram registrados em 18 e 24 de julho de 2020, respectivamente, 40,2% e 39,5%.

 

Outros dados importantes apontados nas reportagens sobre o isolamento social, são aqueles que tratavam de alguns bairros específicos. A exemplo, a reportagem do G1 de 16/04/2020 informava que “o bairro que apresentou o menor índice foi o de Paratibe, com o índice de 33,9%, e o Portal do Sol mostrou o maior nível de distanciamento social, com 69,1%”; já a reportagem de 06/05/2020 apontava que os bairros da orla (Cabo Brando, Tambaú e Manaíra) apresentavam índice de isolamento social de até 64%, enquanto “os bairros de Paratibe (27,5%) e de Barra de Gramame (32,2%) apresentaram os piores resultados das últimas horas”; Finalmente, em 25/06/2020 lia-se que “os maiores índices de isolamento foram registrados no Castelo Branco (60,5%), Penha (59,5%) e Bessa (59,1%). Os menores números foram da região do Costa e Silva e Funcionários (35,8%), Bairro das Indústrias (38,1%) e Mangabeira (39,2%)”.

Como atestado acima, para além da média desse índice de adesão ao isolamento social, quando aprofundamos por bairro, fica explícita uma distinção entre os lugares onde as pessoas efetivamente podiam realizar o isolamento - majoritariamente nos bairros de classe média e classe média alta, ao tempo que nos bairros periféricos e de população em vulnerabilidade social os índices mais baixos eram registrados.

Logo, as condições sócio-espaciais são radicalmente distintas quanto à possibilidade de realizar o distanciamento social, o que implica em formas específicas de disseminação do vírus pela cidade, por consequência, isso refletirá no número de casos e óbitos por bairro. O que argumentamos até aqui, pode ser observado no mapa a seguir:

Mapa 02 - Casos confirmados de COVID-19 em João Pessoa

JOÃO PESSOA COVID-19 CASOS CONFIRMADOS RESIDENTES copy.png

No mapa em questão é demonstrado a espacialização de casos de COVID-19, segundo o boletim da Vigilância Epidemiológica de João Pessoa do dia 01 de maio de 2021, no qual a cidade registrava até sua publicação um total de 86.532 casos, distribuídos em quase todos os bairros, com exceção de Barra de Gramame e Mussuré.

É importante ressaltar inicialmente que há um quantitativo populacional diferente, o que dificulta realizar comparações diretas entre os bairros, dito isso, as sete localidades com mais registro são: Mangabeira com 8.553 ou seja 10% do total, seguido por Manaíra que tem 5% (4.186) dos casos junto com Valentina de Figueiredo que tem 3.937, Cristo Redentor (3.757) e Gramame (3.649) com 4%, Bessa (2.888), Bancários (2.840), Oitizeiro (2.439) e Cruz das Armas (2.304) tem 3%. Os sete menores registros representaram menos de 1% do total de casos oficialmente confirmados e aconteceram nos bairros de: Costa do Sol (22), Ponta do Seixas (38), Mumbaba (42), Penha (62), Anatólia (116), Distrito Industrial (164) e João Agripino (257). 

Alguns fatores comportamentais e estruturais contribuem para o aumento de casos, dentre as quais: o descaso e a falta de informação sobre as medidas não farmacológicas, o uso das máscaras, álcool em gel e a higienização; as condições de trabalho tendo em vista que só uma parcela diminuta da população tem possibilidade de trabalhar de casa; a aglomeração e exposição em lugares fechados, não são raros os registros de ônibus lotados, para além dos flagrantes de festas clandestinas e do turismo em meio a pandemia.

No mapa a seguir podemos observar de distribuição similares.

Mapa 03 - Óbitos COVID-19 em João Pessoa

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Os dados sobre óbitos também são originados do boletim da Vigilância Epidemiológica de João Pessoa do dia 01 de maio de 2021 nele podemos observar que áreas com muito casos tendem a registrar mais óbitos, os bairros com mais mortes são Mangabeira (229), Cristo Redentor         (114) Manaíra (100), Valentina de Figueiredo (100),  Gramame (90),  Cruz das Armas (86),  Oitizeiro (82), Torre (72). Porém essa relação não é inversamente proporcional, Manaíra que é o bairro com o segundo maior número de casos, tem menos mortes que o Cristo Redentor que tem 429 casos a menos.  Os bairros com menos óbitos são: Cidade dos Colibris (11), Varadouro          (10), Distrito Industrial (6), Mumbaba (6), Anatólia (2) Costa do Sol (2) Penha (2 ), João Agripino (1).

Em outros termos, a depender de onde a população resida, a chance de contrair o vírus e falecer é maior ou menor. Os fatores de distinção socioespacial na forma manifestada pela COVID-19, expressam-se não somente aos casos e óbitos, mas também quanto à letalidade. Vejamos no Mapa 04:

Mapa 04 - Taxa de letalidade da COVID-19 em João Pessoa

Taxa de Letalidade copy.png

No mapa acima podemos observar a taxa de letalidade da COVID-19 por bairro. A taxa média de letalidade em João Pessoa é de 2,82%, esse indicador representa o quantitativo de pessoas que morreram em relação ao número de infectados pelo vírus. Nota-se que essas medidas epidemiológicas não são homogêneamente distribuídas na cidade, bairros como Manaíra e Mangabeira que apresentam valores absolutos maiores de casos tem uma taxa de letalidade dentro da média.

Há diversos fatores que podem explicar essas condições, entre eles: o perfil dos grupos populacionais, uma vez que a doença tende a ser mais letal com os mais idosos e em pessoas com comorbidades; a diferença entre notificações de casos, Barra de Gramame e Mussere não tem casos registrados, enquanto Ponta do Seixas apesar de ter registros de casos não tem óbitos identificados, esses exemplos podem significar uma baixa realização de testes, ocasionando em subnotificações; outra dimensão é a diferença ao acesso aos serviços de saúde e a qualidade dos mesmos, observa-se também uma concentração dos estabelecimentos de saúde² (unidades básicas de saúde, centrais de gestão, hospitais, prontos atendimentos, ambulatórios, clínicas, consultórios, entre outros) em bairros com grandes rendimentos por domicílio, sobretudo no eixo centro-praia, evidenciado pela quantidade de serviços nas proximidades da avenida Epitácio Pessoa (pontos azuis no Mapa 03).

A situação do Bessa que apresentava 4.898 casos e 35 óbitos chama particularmente a atenção, pois é um bairro absolutamente tem muitos infectados e uma letalidade de 1.2, ou seja, a cada 140 casos registrados uma pessoa morreu, quando comparado com Costa e Silva, Trincheiras, Costa do Sol, Mumbaba que têm, respectivamente, uma morte a cada 20, 14, 11 e 7 casos, observamos uma gritante discrepância. Isso significa dizer que uma pessoa no Costa e Silva tem sete vezes mais chances de morrer em decorrência da COVID-19 do que uma pessoa no Bessa.

Em suma, seja pela ausência de testagens que invisibilizam uma população doente, ou pela falta e dificuldade de acesso aos serviços hospitalares que permite o agravamento do quadro clínico dos pacientes, observamos aspectos que demonstram as desigualdades sociais na nossa cidade no enfrentamento da pandemia. Nesses termos, cai por terra a ideia de que a pandemia atingiria a todos, independente das condições, da mesma maneira - isso pode até fazer certo sentido de um ponto de vista biológico, mas nossas condições socioespaciais demonstram claramente que, apesar de estarmos sob a mesma tempestade, as condições de se proteger e se curar são radicalmente distintas.

CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

Visando possibilitar que outras pesquisas possam ser realizadas, resumimos abaixo alguns aspectos metodológicos que utilizamos para a execução desse trabalho.

Para a produção do dossiê em questão trabalhamos primeiramente na compilação dos dados acerca da pandemia da COVID-19 em João Pessoa, para tal nos utilizamos do Painel COVID-19 disponibilizado pela Prefeitura Municipal de João Pessoa, onde reunimos os dados de casos confirmados e o número de óbitos no período entre março de 2020 e maio de 2021.

Para compreender o avanço da pandemia na cidade e a relação entre os casos e os óbitos por bairro, recorremos  também aos dados do índice de adesão ao isolamento social e do auxílio emergencial, pois a partir desses dados pudemos traçar um paralelo entre as medidas necessárias para o distanciamento social e sua eficácia na prevenção da contaminação. Assim como, sendo possível apreender a relação entre a população de determinados bairros (ocupação e dinâmica local) com os maiores riscos de exposição e consequente contaminação.

Além dessas informações, também utilizamos os dados da  Vigilância Epidemiológica de João Pessoa e OpenDataSus vinculado ao Ministério da Saúde para acompanhar a vacinação e casos de COVID-19 na cidade. Essas fontes de dados são públicas e encontram-se disponíveis na internet.

Os dados após a coleta foram ordenados e sistematizados no Excel para possibilitar a produção dos mapas e tabelas para auxiliar a entender o que ora objetivamos. Para a produção dos mapas foi utilizado o ArcGis, programa cartográfico amplamente conhecido. Inclusive, a própria prefeitura de João Pessoa fez parceria com seus desenvolvedores para publicar boletins regulares sobre a situação da COVID-19 no município.

Durante a realização da pesquisa e sistematização dos dados, pensamos em realizar uma série de reflexões - a exemplo, sobre a espacialização da população negra na cidade, assim como da concentração de renda em determinados bairros, no entanto, a base principal base de dados que possibilitaria tais comparações ao cruzar esses dados com os que apresentamos em relação à pandemia, seria o censo do IBGE - o qual, nesse sentido, julgamos não ser adequado, visto que já se passaram mais de dez anos de uma atualização.

Dito isso, mais uma vez nos colocamos a reforçar a importância da realização do censo do IBGE de forma segura, com os recursos adequados e todas as questões necessárias para que voltemos a ter no país dados confiáveis e atualizados. Defender o censo é defender a possibilidade do exercício crítico da pesquisa, da docência e da atuação nossa em muitas frentes.

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Essas breves reflexões que ora apresentamos objetivaram contribuir em duas frentes, a primeira pautada em demonstrar a urgência de nós, desde já, produzirmos conhecimento e reflexões sobre a pandemia levando em consideração, também, as condições socioespaciais apresentadas. Acreditamos que isso se trata de uma maneira de contribuir no enfrentamento da pandemia, seja na orientação a partir do entendimento da forma pela qual o vírus se dissemina pela cidade, assim como onde o mesmo é mais letal. No mesmo sentido, também estaremos juntando forças no enfrentamento da onda negacionista ora vivenciada.

A outra frente que objetivamos tocar, diz respeito à forma como esse dossiê foi concebido e produzido: a partir de um esforço coletivamente constituído na AGB João Pessoa. O que de um lado implica no reconhecimento e convite para colegas fortalecerem esses espaços que a entidade proporciona e, do outro, que nossa prática científica também pode se dar para além das pesquisas individuais que costumamos realizar. 

Temos e cada vez mais precisamos nos apossar da nossa capacidade e criticidade enquanto geógrafas e geógrafos em contribuir de forma propositiva para com a sociedade. E não podemos nos furtar dessa tarefa. O dossiê, serve, ao mesmo tempo para consulta da comunidade em geral, da comunidade científica pessoense e paraibana, além de que o enviamos para os órgãos competentes, dentre os quais a Secretaria Municipal de Saúde, Secretaria Municipal de Ciência e Tecnologia e para a Secretaria Municipal de Educação; de forma a auxiliar nos trabalhos de combate à pandemia. 

Entendemos também que para além de contribuir com o poder público, trabalhos como esse enriquecem a nossa atuação docente e científica, além de qualificar nossa participação junto aos movimentos sociais nos quais nossa presença se faz imprescindível.

Notas

1 - Referência do índice de adesão ao isolamento social por data: 16/04/2020; 19/04/2020; 21/04/2020; 26/04/2020; 05/05/2020; 11/05/2020; 18/05/2020; 25/05/2020; 25/05/2020; 27/05/2020; 29/05/2020; 31/05/2020; 01/06/2020; 02/06/2020; 03/06/2020; 07/06/2020; 14/06/2020; 25/06/2020; 16/07/2020; 18/07/2020; 24/07/2020.

2 - Estabelecimentos de saúde é definido pela portaria nº 2.022, de 7 de agosto de 2017 como “o espaço físico delimitado e permanente onde são realizadas ações e serviços de saúde humana sob responsabilidade técnica” (BRASIL, 2017). Para mais informações consultar <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2022_15_08_2017_rep.html>

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